10.31.2008

"Recomeça... se puderes, sem angústia e sem pressa e os passos que deres, nesse caminho duro do futuro, dá-os em liberdade, enquanto não alcances não descanses, de nenhum fruto queiras só metade."

Miguel Torga

10.30.2008


10.28.2008

Essa luz de primavera
atravessa a janela
e iridescente vem brincar
sobre a penteadeira.

Arco-íris móvel e pequenino
passeia pelo espelho,
vidros de perfume,
e pousa na moldura
do nosso retrato.

Uma sombra entreliçada
projeta-se no chão do quarto...
Andamos indiferentes sobre ela.
(Transponível grade
para etéreos passos.)
E ficamos recortados
em pedaços.
enleados no chão da cela...

10.22.2008

Esse verbo sempre
na primeira pessoa.
esse orgulho bobo
essa mansidão escondida
sob a pele de lobo...

Essa fome constante,
essa paz que não tens,
no amor que te convém,
e a fé indecisa que te impele
a seguir adiante...

Essa água benta de bilha,
que ora bebes,
ora asperges
nesse culto herege
a um deus de mentira.

10.21.2008

Ele segue pelos trilhos
cortando o descampado
e carrega seu destino
mais velho que o mundo...

Vai soturno o trem de travessia
através dos montes,
enquanto o olhar das vacas
se estende sobre o horizonte
que não alcançamos...

O capim seco descansa
e espera pelas chuvas.
Bem antes das curvas, o apito triste
dá o tom à tarde que cai...

10.16.2008

Inventámo-nos. Somos
eco do mesmo apelo reconhecido,
a mesma busca
dum resgate impossível.
A mesma fome nos ergueu
os braços
a um gesto de encontro,
um riso,
um pólen na viagem do vento.
E eis que o pássaro inexistente
pousa
concreto e tangível
sobre os nossos ombros

Egito Gonsalves

10.13.2008

bucólica

10.10.2008

Dois sós
não se juntam.
Dois nós
não se enlaçam...
E nós
nesse tubo
somos tudo,
menos nós.

Eu e você,
cada um
único
Isolados...
Lado a lado,
sós
como nós
desatados...
Folheamos
agora dicionários cada vez mais breves.
De noite, os teus cabelos emigram

como espigas de incenso.
Há gerânios pisados entre os dedos,

dálias virgens sufocadas na epiderme.
As palavras só conhecem o limbo,

a rigorosa película da sede.

Albano Martins

10.07.2008

Contemplo o lago mudo
que uma brisa estremece.
Não sei se penso em tudo
ou se tudo me esquece.

O lago nada me diz,
não sinto a brisa mexê-lo
não sei se sou feliz
nem se desejo sê-lo.

Trêmulos vincos risonhos
na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos
a minha única vida?

Fernando Pessoa

10.06.2008

tenho o olhar preso aos ângulos escuros da casa
tento descobrir um cruzar de linhas misteriosas, e com elas quero construir um templo em forma de ilha
ou de mãos disponíveis para o amor

na verdade, estou derrubado
sobre a mesa em fórmica suja duma taberna verde, não sei onde
procuro as aves recolhidas na tontura da noite
embriagado entrelaço os dedos
possuo os insectos duros como unhas dilacerando
os rostos brancos das casas abandonadas, à beira-mar
dizem, que ao possuir tudo isto
poderia ter sido um homem feliz, que tem por defeito interrogar-se acerca da melancolia das mãos
esta memória lâmina incansável

um cigarro
outro cigarro vai certamente acalmar-me
que sei eu sobre tempestades do sangues? e de água?
no fundo, só amo o lado escondido das ilhas
amanheço dolorosamente, escrevo aquilo que posso
estou imóvel, a luz atravesa-me como um sismo
hoje, vou correr à velocidade da minha solidão

Al Berto

10.03.2008

E, no entanto, às vezes bem preciso
de entregar nas tuas mãos o meu espírito
e que, por um momento, baste
que seja feita a tua vontade
para tudo de novo ter sentido,
não digo a vida, mas ao menos o vivido,
nomes e coisas, livre arbítrio, causalidade.
Oh, juntar os pedaços de todos os livros
e desimaginar o mundo, descria-lo,
amarrado ao mastro mais altivo do passado!
Mas onde encontrar um passado?

Manuel António Pina

10.01.2008

Em frente à casa velha
de porta e janelas faceando a rua
um velho fumega seu palheiro.
Hospitaleiro e sem alarde,
soa na capela pacífica
o sino da tarde.

Em alguma estação distante,
à esta hora, um trem retorna
e traz o viajante
para os braços da amada.
No telhado corado
à luz da tardinha,
um sabiá arremata seu canto.

Morrem longe
o rumor alegre de fim de feira
e o murmúrio afanoso
do lavrador na aldeia.

Tudo é lida e vagar,
repouso e fadiga,
lanço de escada,
patamar...

Por que então, ó meu Deus,
não dorme nunca em meu peito,
esta alma desassossegada?

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