9.30.2007

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.
Se acaso você não possa

me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
Se no coração não possa

por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
E se aí também não possa

por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

Ferreira Gullar

9.22.2007

Em frente à casa velha
de porta e janelas faceando a rua
um velho fumega seu palheiro.
Hospitaleiro e sem alarde,
soa na capela pacífica
o sino da tarde.

Em alguma estação distante,
à esta hora, um trem retorna
e traz o viajante
para os braços da amada.
No telhado corado
à luz da tardinha,
um sabiá arremata seu canto.

Morrem longe
o rumor alegre de fim de feira
e o murmúrio afanoso
do lavrador na aldeia.

Tudo é lida e vagar,
repouso e fadiga,
lanço de escada,
patamar...

Por que então, ó meu Deus,
não dorme nunca em meu peito,
esta alma desassossegada?

9.18.2007


o silêncio tem a espessura das papoulas murchas
e os objectos parecem aproximar-se do sono
inclinam-se para o lado onde se situam os moinhos
as ermidas
os bosques diluídos
o nítido ladrar dos cães
que horas serão para lá desta fotografia?
com uma grande angular circundo o mosteiro ao morrer do dia
perto dos jardins cheira a laranjas orvalhadas em tua respiração
tenho uma iluminação de astros rebentando do arco-íris da noite
quando abro o diafragma todo para as linhas oblíquas do rosto em telha quase rubra
o dia desaguou ao fundo das ruas desertas
apresso o passo debaixo do voo das aves
recolho o olhar
onde um fauno vem beber a nocturna nudez das aves

Al Berto

9.16.2007

Raio branco e sonoro de sol
atravessa a vidraça.
Iridescente bemol.

9.15.2007




Arpejos de Gounod
crescem nas veias.
O sopro do vento
acende luzes
nos postes da vila.
Anjos em cortejo
dobram os joelhos
em nuvens de espuma.
Os olhos do dia
pestanejam em abandono.
Anoitece!

9.14.2007

Sei que despertei e que ainda durmo. O meu corpo antigo, moído de eu viver diz-me que é cedo ainda… Sinto-me febril de longe. Peso-me, não sei porquê… Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo, estagno, entre o sono e a vigília, num sonho que é uma sombra de sonhar. Minha atenção bóia entre dois mundos e vê cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e estas profundezas interpenetram-se, misturam-se, e eu não sei onde estou nem o que sonho.
Um vento de sombras sopra cinzas de propósitos mortos sobre o que eu sou de desperto. Caio de um firmamento desconhecido um orvalho morno de tédio. Uma grande angústia inerte manuseia-me a alma por dentro e, incerta, altera-me, como a brisa aos perfis das copas. Na alcova mórbida e morna a antemanhã de lá fora é apenas um hálito de penumbra. Sou todo confusão quieta… para que há-de um dia raiar?...
Custa-me o saber que ele raiará, como se fosse um esforço meu que houvesse de o fazer aparecer.
Com uma lentidão confusa acalmo. Entorpeço-me. Bóio no ar, entre velar e dormir, e uma outra espécie de realidade surge, e eu em meio dela, não sei de que onde que não é este…


Bernardo Soares

9.10.2007





O vento de agosto desprendia fuligem das telhas,
que caia no chão de tijolo, coberto de rubra cera.
A um canto da cozinha, o fogão reinava absoluto,
pleno da luz do fogo na sua alma enfumaçada.
Na pele, a cobertura de negror de luto.

A lenha já queimada jazia em carvão incandescente,
sem chama, brasa apenas, e estalava, estalava.
Um cinzeiro farto e aconchegante as abrigava.
O tacho na chapa quente segurava a colher de pau,
cansada de mexer e remexer o doce de goiaba.

Havia ainda o café no bule, o leite requentado.
O aroma da carne assada impregnava o casarão.
Do teto, em cordões, pendia a carne de porco,
por meses e meses, em demorada defumação.

Era cálida a tarde de inverno naquela cozinha.
Era silencioso o descansar do fermento na massa do pão.
Era de silêncio também a espera no meu coração,
pelo amor que se consumia sem chama, como o carvão.

9.08.2007

Quero a face pacificada
dos anjos tocando harpa
ou do boi apascentado no pasto.
O ricto da dor
e o sulco da lágrima
têm texturas de aço.

9.07.2007











Dá-me tua mão:
Vou agora lhe contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta
De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois
de como vi a linha de mistério e fogo,
que é a linha sub-reptícia.
Entre duas notas musicais existe uma nota,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
-nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio
e nesse silêncio profundo se esconde
minha imensa vontade de gritar.
Clarice Lispector

9.04.2007

Cai a pluma
rítmico suspense do sinistro
nas espumas primordiais
de onde há pouco sobressaltara seu delírio
a um cimo fenescido
pela neutralidade idêntica do abismo.

Mallarmé

9.02.2007

"O coração, se pudesse pensar, pararia."

Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

9.01.2007


O quarto ficava à direita
da casa grande
(o segundo de quem
passava pelos corredores).

Sua janela imensa
( que parecia descer do céu),
abria-se para a varanda úmida,
com beirais de lambrequins
em rococó
e muitas samambaias,
num sombrio painel.

Não sei dizer
se as paredes do quarto
eram altas demais,
ou se o teto ficava
muito distante do chão.
Só me lembro
do tamanho do medo
nas noites de extrema escuridão.


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