A suavidade com que ele ouvia a noite era para a noite o próprio algoz, pois a noite não se alimenta de coisas suaves.
Passo o tempo a olhar,
a folha em forma de concha,
que sustenta os pingos da chuva,
até quarenta e três.
Depois, pesada,
derrama os pingos de uma vez
na terra encharcada...
Como menino a brincar na bica
a folha repete o gesto,
enquanto estou por perto...
No vai e vem do verde, ouço
os quarenta e três conselhos
que o pensamento dita,
e vou anotando à tinta,
no papel vermelho
que a chuva insiste em manchar...
orada
Segunda De poetas e filósofos tu sabes, sabes também por ti. Por isso eu digo : esta pedra é vermelha, esta pedra é sangue. Toca-lhe : saberás como em segredo florescem as acácias ao redor dos muros, como fluem suas concêntricas artérias. Acaricia-as : tocas a parte mais sensível de ti mesmo. Dizias ontem que o verão ardia nesta pedra. Nela queimavas tuas mãos. Onde as aqueces hoje? Eu digo : o verão não morreu, esta pedra é o verão. E tudo permanece. E tudo é teu. Tu és o sangue, o verão e a pedra. Albano Martins
Na noite de luar,
a poesia cobre-me com seus trapos
e a incômoda linha de um farrapo
insiste em provocar o verso.
Pedinte, estendo-lhe a mão.
rogo,
por misericórdia de Pessoa
que me venha o abrigo,
o albergue da inspiração...
a água quente...
o leito macio...
E vou assim,
esgarçando o texto com reticências
para ter idéia da minha idéia,
difusa...
confusa...
e mendiga,
à espera de um poema que convença...
Para enxergar claro, bastar mudar a direção do olhar.
Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos. Antoine de Saint-Exupéry
Tens uma paleta a que faltam algumas cores. Talvez porque há substâncias a que não soubeste dar expressão. Ou porque elas são incolores. Ou porque em toda a realidade há fendas que nem pela palavra, nem pela cor, alguma vez saberás aprender.Albano Martins
azul
Assombra-me esse poema silencioso
que chega à porta do pensamento
(como envelope sem endereço)
e implora asilo.
Insinua-se na ponta do lápis
e a palavra, sua mensageira,
vacila um pouco prosa,
um pouco rosa,
sutil e reticente
como a sarça que arde
sem se consumir.