10.30.2007


Ninguém soube dos pensamentos
que ficaram aprisionados
pelas imposturas da razão.

Detidos, debateram-se pelo quarto
a colidir de encontro à mobília tosca,
sempre na madrugada,
quando as algemas sufocavam.

10.28.2007

Rasgou-se o lençol da bruma.
Um arrepio de luz
abriu as flores molhadas
e transformou-as em espuma.

E um grito feito de sangue
toldou a manhã inteira.
Atiro às asas do vento
minha amargura ligeira.


Albano Martins

10.26.2007


Depois de longa ausência,
ela retornou ao aposento.
Tudo estava diferente.
No centro do cubículo,
a pequena mesa de mogno
ainda amparava
a velha máquina de escrever.

A um canto, madeiras sem endereço.
Amontoados do que havia sido o leito

Uma luz amarela e tímida
enchia de sépia o ambiente,
com aquele tom de desolação,
só encontrado onde a vida deixou de ser.

Tudo era abandono,
menos o convite insinuado
na folha de papel em branco
pedindo o recomeço.

10.25.2007

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa (me) dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.


Vinícius de Moraes

10.24.2007

A tempestade entrou pela casa
e assolou o que havia de frágil.
O vaso de cristal,
a floreira de porcelana,
o amor de vidro
e o crisol de barro,
onde moldavam a paz.

Quando amanheceu
reluziram ao sol
os cacos da vida
em desenhos

de caleidoscópio.

10.23.2007

Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.

Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,
agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.

Manuel António Pina

10.21.2007


Nada me resta
senão abrigar esta saudade
que veio em laços de fita
e papel de seda.
Hei de polir seus desvãos
não como desdita
mas aguilhão e labareda
para toda poesia
que se acercar de mim.

10.20.2007

Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.

Clarice Lispector

10.17.2007


Esse verbo sempre
na primeira pessoa,
esse orgulho bobo,
essa mansidão escondida
sob a pele de lobo...

Essa fome constante,
essa paz que não tens
no amor que te convém,
e a fé indecisa que te impele
a seguir adiante.

Essa água benta de bilha,
que ora bebes,
ora asperges
nesse culto herege
a um deus de mentira.
Segunda
De poetas e filósofos tu sabes, sabes também por ti.
Por isso eu digo : esta pedra é vermelha, esta pedra é sangue.
Toca-lhe : saberás como em segredo florescem as acácias
ao redor dos muros, como fluem suas concêntricas artérias.
Acaricia-as : tocas a parte mais sensível de ti mesmo.
Dizias ontem que o verão ardia nesta pedra.
Nela queimavas tuas mãos.
Onde as aqueces hoje?
Eu digo : o verão não morreu, esta pedra é o verão.
E tudo permanece.
E tudo é teu.
Tu és o sangue, o verão e a pedra.

Albano Martins

10.16.2007

Todas as palavras se perderam
no hiato que se formou
entre o beijo da despedida
e a corrosiva saudade que se instalou,
como se a ponte que ligava
minhas margens às tuas
ruísse inesperadamente.
O rio de sonhos,
antes navegável,
é hoje vau de entulhos,
escuro veio de espera e desencanto,
onde peixes se soltam na correnteza,
sem empenho de chegar.

10.15.2007


"Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo mesma, como uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre..."

"Tenho ternura, ternura até às lágrimas...
Tenho amor a isto, talvez porque não tenha mais nada que amar - ou talvez, também, porque nada valha o amor de uma alma, e, se temos por sentimento que o dar, tanto vale dá-lo ao pequeno aspecto do meu tinteiro como à grande indiferença das estrelas."

"Nós nunca nos realizamos.
Somos dois abismos - um poço fitando o Céu."

Fernando Pessoa

10.13.2007

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.

Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.
Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.

Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.

Miguel Torga

10.10.2007


Primeiro veio a dor,
depois a saudade,
em seguida a ira,
por fim o despique.

Tudo se acalmou...

Hoje, como borboleta
trago na pele
este brilho de “lalique”
que a indiferença deixou
.

10.09.2007

Os sinos cantando, as sombras todas se diluindo dentro da tarde.
Dentro da tarde, o teu grave pensamento de exílio.
Por que ainda esperas?
Aqui termina o caminho, aqui morre a voz, e não há mais eco nem nada.
Por que não esquecer, agora,
as imagens que tanto nos perturbaram e
que inutilmente nos conduziram
para nos deixar, de súbito, na primeira esquina?
Essa voz que vem, não sei de onde,
esses olhos que olham, não sei o quê,
esses braços que se estendem, não sei para onde...
Debalde esperarás que o oco de teus passos acorde os espaços que já não têm voz.
As almas já desertaram daqui.
E nenhum milagre te espera,
nenhum.

Emílio Moura

10.07.2007


Ouso o vôo
e pouso cauteloso
nos vãos do sicômoro.
Repouso a asa
cansada.
Espero o sol,
e ouso de novo
outro vôo,
rumo ao arrebol.

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