6.30.2006

Olho no olho,
no frio,
deixa-nos também começar assim:
juntos deixa-nos respirar o véu
que nos esconde um do outro,
quando a noite se dispõe a medir
o que ainda falta chegar
de cada forma que ela toma
para cada forma
que ela a nós dois emprestou.

Paul Celan


Há um homem que caminha no escuro e seus passos sempre o conduzem ao inevitável abismo. Nem voz amiga, nem braço forte, nem correntes, serão capazes de detê-lo. O sol repousa sobre sua vontade e não nascerá, sem que este homem desperte a vontade e dê a ordem de comando à luz. Enquanto isto, é fina a linha que o separa da desrazão, loucura almejada para quem não soube ser feliz.

6.28.2006

Menina sublunar, afogada,
que voz de prata te embala
toda desfolhada?

Tendo como um só adorno
o anel de seus vestidos,
ela própria é quem se encanta
numa canção de acalanto
presa ainda na garganta.


Olga Savary

6.24.2006


Ao olhar uma opala meio cinzenta
lembrei-me de dois belos olhos cinzentos que vi;
haverá uns vinte anos
............................

Durante um mês amámo-nos.
Foi-se embora depois creio que para Esmirna,
para lá trabalhar, e nunca mais nos vimos.

Ter-se-ão desfeado - se vive - os olhos cinzentos;
ter-se-á estragado o belo rosto.
Memória minha, guarda-os tu tais como eram.
E, memória, o que podes deste meu amor,
o que podes traz-me de volta esta noite.

Constantinos P. Cavafis
Eu sabia que era véspera do dia de São João, quando ela aparecia de tesoura na mão para podar as roseiras. Colhia as derradeiras rosas do outono e levava para Nossa Senhora. Uma delicadeza de gesto que contrastava com a força ao lidar com galhos secos e espinhos, que invariavelmente lhes sangravam os dedos. Ela era tudo isso. No gesto, a suavidade de colher flores. Nas palavras a incisão, o gume de faca, a agudeza de quem sabe que amanhã é dia de sepultar os mortos.

6.20.2006


E ao anoitecer
adquires nome de ilha ou de vulcão
deixas viver sobre a pele
uma criança de lume
e na fria lava da noite
ensinas ao corpo a paciência o amor
o abandono das palavras
o silêncio
e a difícil arte da melancolia.

Al Berto

6.18.2006

Há uma dose de redenção na espera. Vestimo-nos com o manto da inocência e guardamos os gestos em cestos enfeitados, para oferecer na hora da chegada. Armazenamos palavras nunca antes proferidas. Palavras de entendimento que talvez surpreendam aquele que vem ainda com o coração ferido. E quanto maior a espera, maior a penitência. O arrependimento e a dúvida disputam os melhores lugares, enquanto a ansiedade reina sozinha nesse átimo, em que é preciso reconstruir, em que a razão ditará o melhor caminho.

Palavras

Nenhum ramo é seguro.
Frágeis
são as palavras.

Albano Martins

6.16.2006

Nem o sangue de bodes e touros bastaria para a purificação da palavra impura. Nada a santificaria, nem mesmo a cinza de novilhas espalhada sobre a língua de quem a proferiu, ou sobre as mãos de quem a escreveu. Para a palavra impura, o cadafalso. E que se espalhe sal sobre seus descendentes, para que não dissemine nem mesmo a intenção primeira. Só então, no berço vazio onde essa palavra foi gerada, há de se acalentar o perdão.

6.15.2006

Busco a palavra que vem límpida do nascedouro, veio cristalino a percorrer caminhos tortuosos. Quero a palavra de rumo certo, resvalada entre margens do desentendimento, e engrossada pelas águas das ternuras afluentes. Procuro a palavra que não se desvia, seja ela de postura ou poesia, mas sempre a palavra primitiva, sem bifurcações ou dúbia propositura. Hei de encontrá-la, bem sei; para que seja ela, essa palavra inteira, (miolo de sentença), a luz do mal-entendido, a água pura que vem regar o que ainda resta de bem querença.

6.14.2006

Não, eu não escreveria palavras ao vento, nem palavras para leitor passageiro. Minhas palavras têm endereço. Vêm de longa jornada, sob chuva e sob sol, por isso seus tons em branco e preto. E hão de chegar aos olhos da menina que aprendeu a gostar da poesia.
A palavra, embora absoluta, não contem em si toda a verdade. Quem diz amo, não ama totalmente e quem diz vou, carrega consigo a vontade de ficar ou o verbo já impregnado de saudade. Não adianta buscar respostas nas palavras. Uma vez distorcidas, tornam-se a torcer num emaranhado sem limite, intrincados nós, difíceis de destecer. E como disse o poeta, a verdade que buscamos, ainda que tardia, solitária ou inédita, está dentro de nós e não na palavra que foi escrita. A palavra, embora contundente, não traz em si o gume cortante capaz de sangrar, quando tem como fonte o coração de um amigo. Vem sim como alerta, revelação, ou medo de que tudo venha se perder. A palavra contém meia verdade.

6.13.2006

Escrevo-te com o fogo e a água

 Forest in Autumn - Levy Dhurmer
Escrevo-te com o fogo e a água. Escrevo-te
no sossego feliz das folhas e das sombras.
Escrevo-te quando o saber é sabor, quando tudo é surpresa.
Vejo o rosto escuro da terra em confins indolentes.
Estou perto e estou longe num planeta imenso e verde.

O que procuro é um coração pequeno, um animal
perfeito e suave. Um fruto repousado,
uma forma que não nasceu, um torso ensanguentado,
uma pergunta que não ouvi no inanimado,
um arabesco talvez de mágica leveza.

Quem ignora o sulco entre a sombra e a espuma?
Apaga-se um planeta, acende-se uma árvore.
As colinas inclinam-se na embriaguez dos barcos.
O vento abriu-me os olhos, vi a folhagem do céu,
o grande sopro imóvel da primavera efémera.

António Ramos Rosa
Volante Verde - 1986
in Antologia Poética

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