Faze de mim o sentinela de teus longes, faze de mim o ouvidor do rochedo; dá-me que os olhos meus eu arregale por sobre a solitude de teus mares; deixa-me ser o leito de teus rios, infenso ao grito de qualquer das margens, bem longe, para além do som das noites!
Dança-me por tuas vazias terras pelas quais os mais largos ventos passam e onde claustros, como muros enormes, encerram tantas vidas não vividas.
Lá ficarei eu entre os peregrinos, das vozes e das atitudes deles isolado não mais por mentira nenhuma, e atrás de idosos cegos seguindo a senha que nenhum conhece.
Quando a tardinha vem mansa, e o poente acama o sol já sonolento, as águas do rio tingem-se de negro e ele segue seu curso escuro e lamacento.
Mas, lá adiante, onde as margens fazem curva pronunciada, os raios do sol dormente, em retirada, beijam o rio no adeus do dia, e este cora em purpurina dourada.
Escondido no taquaral o pássaro fugidio em canto triste anuncia ao matagal: - “Sim, é de ouro a cor da curva do rio...”.
Pluma irrequieta, ao feitio de resposta malcriada que não sossega, impaciente, carrega-me contigo na tarde de outono num vento indolente!
Leva-me para o infinito até eu me sentir em profundo azul transmutada. Olvida o pássaro a quem pertenceste. faça-me esquecer o amor a quem me mantive atada.
Ah! Pluma irrequieta! Se te perderes na tarde do outono, no vasto céu, ou numa alva açucena, deixa-me, por favor, de delicada sílfide, a tua resposta mais amena.
o silêncio tem a espessura das papoulas murchas e os objectos parecem aproximar-se do sono inclinam-se para o lado onde se situam os moinhos as ermidas os bosques diluídos o nítido ladrar dos cães que horas serão para lá desta fotografia?
com uma grande angular circundo o mosteiro ao morrer do dia perto dos jardins cheira a laranjas orvalhadas em tua respiração tenho uma iluminação de astros rebentando do arco-íris da noite quando abro o diafragma todo para as linhas oblíquas do rosto em telha quase rubra o dia desaguou ao fundo das ruas desertas apresso o passo debaixo do voo das aves recolho o olhar onde um fauno vem beber a nocturna nudez das aves
Eu queria trazer-te uns versos muito lindos colhidos no mais íntimo de mim... Suas palavrasseriam as mais simples do mundo, porém não sei que luz as iluminaria que terias de fechar teus olhos para as ouvir... Sim! Uma luz que viria de dentro delas, como essa que acende inesperadas cores nas lanternas chinesas de papel! Trago-te palavras, apenas... e que estão escritas do lado de fora do papel... Não sei, eu nunca soube o que dizer-te e este poema vai morrendo, ardente e puro, ao ventoda Poesia...como uma pobre lanterna que incendiou!
Nas nossas ruas, ao anoitecer, Há tal soturnidade, há tal melancolia, Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia Despertam-me um desejo absurdo de sofrer
Vou buscar num altar qualquer da minha infância, o encanto mágico da lamparina, onde a chama estática flutuava sobre água e óleo. Trago essa luz-menina para os dias adultos
A sombra imensa, a noite infinita enche o vale . . . E lá do fundo vem a voz Humilde e lamentosa Dos pássaros da treva.
Em nós,— Em noss'alma criminosa, O pavor se insinua . . . Um carneiro bale. Ouvem-se pios funerais.
Um como grande e doloroso arquejo Corta a amplidão que a amplidão continua . . . E cadentes, metálicos, pontuais, Os tanoeiros do brejo, — Os vigias da noite silenciosa, Malham nos aguaçais.
Pouco a pouco, porém, a muralha de treva Vai perdendo a espessura, e em breve se adelgaça Como um diáfano crepe, atrás do qual se eleva A sombria massa Das serranias.
O plenilúnio vai romper . . . Já da penumbra Lentamente reslumbra A paisagem de grandes árvores dormentes. E cambiantes sutis, tonalidades fugidias, Tintas deliqüescentes Mancham para o levante as nuvens langorosas.
Enfim, cheia, serena, pura, Como uma hóstia de luz erguida no horizonte, Fazendo levantar a fronte Dos poetas e das almas amorosas, Dissipando o temor nas consciências medrosas E frustrando a emboscada a espiar na noite escura, — A Lua Assoma à crista da montanha.
Em sua luz se banha A solidão cheia de vozes que segredam . . . Em voluptuoso espreguiçar de forma nua As névoas enveredam No vale. São como alvas, longas charpas Suspensas no ar ao longe das escarpas.
Lembram os rebanhos de carneiros Quando, Fugindo ao sol a pino, Buscam oitões, adros hospitaleiros E lá quedam tranqüilos ruminando . . .
Assim a névoa azul paira sonhando . . . As estrelas sorriem de escutar As baladas atrozes Dos sapos.
E o luar úmido . . . fino . . . Amávico . . . tutelar . . . Anima e transfigura a solidão cheia de vozes . . .
E ao anoitecere ao anoitecer adquires nome de ilha ou de vulcão deixas viver sobre a pele uma criança de lume e na fria lava da noite ensinas ao corpo a paciência o amor o abandono das palavras o silêncio e a difícil arte da melancolia
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