Lembra-te: ainda há pouco havia à beira do caminho algumas pétalas. Agora há lama e nela afundas os sapatos. E outro caminho não conheces. E outro também não há.
Se eu firmar os olhos, é possível ainda vê-lo, sentado com desvelo, numa das pontas da minguante embarquecida, tendo nas mãos um caniço de prata, a pescar estrelas no infinito.
Se eu apurar os ouvidos, é possível ainda percebê-lo buscando palavras com esmero para dar conselhos à Vênus insone, insistente no céu matutino.
Ah, se eu forçar o desejo, é possível ainda trazê-lo, eivado de saudade e medo, mesmo que por instante sibilino, para sentar comigo e falar de amor, à sombra do tamarindo.
Deus deu a meu pai olhos azuis como o céu e calmos como remanso ao luar. E só eram assim calmos e azuis porque neles não moravam a dúvida e o espanto, nem a mágoa, nem o pranto.
Eram apenas olhos de calmaria; e de pensar naqueles olhos inundo-me da poesia que vem da saudade e interrompo o pensamento só para não mostrar que choro.
Habituou-se à música estranha da noite: um pio aqui, outro lá do pássaro noturno; o diálogo soturno dos cães que se comunicam. Quando pássaros e cães adormeciam havia a possibilidade de ouvir a fricção delicada do silêncio contra o silêncio. Era um lamento de tristeza.
desprende-se do teu olhar o magnífico abandono dos animais adormecidos recordo tuas mãos gretadas pelos sóis oblíquios destes dias do corpo esquecido jorram resinas retenho ainda os mais íntimos desejos de me confundir com a paisagem ou de viver precariamente no outro lado do teu silêncio enrubescido
Ao bater-me na cara a verdade inteira perdi o norte, e nos desvãos da dor e da revolta, provei o gosto amargo da decepção e da morte.
Se a verdade é desprovida de cantos e liras, e se não posso suportar na face as verdades todas, dá-me Senhor permanecer por mais tempo nos braços desta poética mentira.
Despedimo-nos numa das esquinas do Onze. Da outra calçada tornei a olhar: você se tinha virado e dava-me adeus com a mão. Um rio de veículos e de gente corria entre nós; eram as cinco de uma tarde qualquer; como iria eu saber que aquele rio era o triste Aqueronte, o insuperável. Não nos vimos mais, e um ano depois você tinha morrido. E eu, agora, busco essa recordação, e olho-a e penso que era falsa, e que por trás da despedida trivial estava a infinita separação. Na noite passada não saí depois do jantar e reli, para compreender estas coisas, o último ensinamento que Platão põe na boca do seu mestre. Li que a alma pode fugir quando morre a carne. E agora não sei se a verdade está na aziaga interpretação ulterior ou na despedida inocente. Porque se as almas não morrem, é perfeitamente justo que em suas despedidas não haja ênfase. Dizer-se adeus é negar a separação, é dizer: Hoje brincamos de nos separar, mas amanhã nos veremos. Os homens inventaram o adeus porque se sabem de algum modo imortais, ainda que se julguem contingentes e efêmeros. Delia: um dia continuaremos – junto de que rio? – este diálogo incerto e nos perguntaremos se alguma vez, numa cidade que se perdia numa planície, fomos Borges e Delia
A noite lhe permitia voar pelos vastos caminhos da perdição. Por isso, ao entardecer, deixava que a alma se despisse e dava-lhe asas para que ela cometesse seus descalabros
Ao amanhecer, como penitente, depunha as asas da alma na soleira do dia e amargava a cegueira que a luz provocava.
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