9.30.2008

Lembra-te:
ainda há pouco
havia à beira
do caminho
algumas pétalas.
Agora
há lama e nela
afundas os sapatos.
E outro caminho não conheces.
E outro também não há.

Albano Martins

9.27.2008

primavera, recomeço

9.26.2008

Se eu firmar os olhos,
é possível ainda vê-lo,
sentado com desvelo,
numa das pontas
da minguante embarquecida,
tendo nas mãos um caniço de prata,
a pescar estrelas no infinito.

Se eu apurar os ouvidos,
é possível ainda percebê-lo
buscando palavras com esmero
para dar conselhos à Vênus insone,
insistente no céu matutino.

Ah, se eu forçar o desejo,
é possível ainda trazê-lo,
eivado de saudade e medo,
mesmo que por instante sibilino,
para sentar comigo e falar de amor,
à sombra do tamarindo.


para êle

9.25.2008


Deus deu a meu pai
olhos azuis como o céu
e calmos
como remanso ao luar.
E só eram assim
calmos e azuis
porque neles não moravam
a dúvida e o espanto,
nem a mágoa,
nem o pranto.

Eram apenas
olhos de calmaria;
e de pensar naqueles olhos
inundo-me da poesia
que vem da saudade
e interrompo o pensamento
só para não mostrar que choro.

9.21.2008

Habituou-se à música estranha da noite:
um pio aqui, outro lá do pássaro noturno;
o diálogo soturno dos cães que se comunicam.
Quando pássaros e cães adormeciam
havia a possibilidade de ouvir
a fricção delicada do silêncio contra o silêncio.
Era um lamento de tristeza.

9.20.2008

desprende-se do teu olhar o magnífico abandono dos animais adormecidos
recordo tuas mãos gretadas pelos sóis oblíquios destes dias
do corpo esquecido jorram resinas
retenho ainda os mais íntimos desejos de me confundir com a paisagem
ou de viver precariamente no outro lado do teu silêncio enrubescido


Al Berto

9.19.2008


Ao bater-me na cara
a verdade inteira
perdi o norte,
e nos desvãos
da dor e da revolta,
provei o gosto amargo
da decepção e da morte.

Se a verdade é desprovida
de cantos e liras,
e se não posso suportar
na face as verdades todas,
dá-me Senhor
permanecer por mais tempo
nos braços desta poética mentira.

9.10.2008

Despedimo-nos numa das esquinas do Onze.
Da outra calçada tornei a olhar: você se tinha virado e dava-me adeus com a mão.
Um rio de veículos e de gente corria entre nós; eram as cinco de uma tarde qualquer; como iria eu saber que aquele rio era o triste Aqueronte, o insuperável.
Não nos vimos mais, e um ano depois você tinha morrido.
E eu, agora, busco essa recordação, e olho-a e penso que era falsa, e que por trás da despedida trivial estava a infinita separação. Na noite passada não saí depois do jantar e reli, para compreender estas coisas, o último ensinamento que Platão põe na boca do seu mestre. Li que a alma pode fugir quando morre a carne.
E agora não sei se a verdade está na aziaga interpretação ulterior ou na despedida inocente.
Porque se as almas não morrem, é perfeitamente justo que em suas despedidas não haja ênfase.
Dizer-se adeus é negar a separação, é dizer: Hoje brincamos de nos separar, mas amanhã nos veremos.
Os homens inventaram o adeus porque se sabem de algum modo imortais, ainda que se julguem contingentes e efêmeros.
Delia: um dia continuaremos – junto de que rio? – este diálogo incerto e nos perguntaremos se alguma vez, numa cidade que se perdia numa planície, fomos Borges e Delia

Jorge Luis Borges

9.09.2008

buganvílias
Desceu ao porão da memória,
revirou baús
e arrancou de lá
aquela lembrança perdida
que reluziu ao luar.
Diante de tanto brilho,
ele chorou.

9.06.2008

Vagueio pelas sacadas...
Ouves meus passos e dormes inquieta.
A lua é límpida e acordas sem lua,
sem leme,
nem brisa a murmurar meu nome.

Sais do pesadelo como quem sai do mar.
Respingos de arrebentação
douram teus cabelos
mas tens um único pensamento:
a procura.

Não vês que estou por perto.
Minha busca é o desígnio da noite.
Ela me dá sua permissão para penetrá-la
como o mais louco dos poetas.

O vento fustiga a sacada
e a distância entre meus passos e os teus
tem o tamanho da solidão.

(parceria Felice e A.Campos)

9.03.2008

prenúncio de tempestade
A noite lhe permitia
voar pelos vastos caminhos
da perdição.
Por isso,
ao entardecer,
deixava que a alma se despisse
e dava-lhe asas
para que
ela cometesse seus descalabros

Ao amanhecer,
como penitente,
depunha as asas da alma
na soleira do dia
e amargava
a cegueira que a luz
provocava.

9.02.2008

Real, real porque me abandonaste?
E, no entanto, às vezes bem preciso
de entregar nas tuas mãos o meu espírito
e que, por um momento, baste

que seja feita a tua vontade
para tudo de novo ter sentido,
não digo a vida, mas ao menos o vivido,
nomes e coisas, livre arbítrio, causalidade.

Oh, juntar os pedaços de todos os livros
e desimaginar o mundo, descriá-lo,
amarrado ao mastro mais altivo
do passado!
Mas onde encontrar um passado?

Manuel António Pina

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